quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Arrependimento bíblico - J. I. Packer


  
Observar um texto bíblico clássico que traça o perfil do arrependimento que vem de dentro nos será útil aqui. No Salmo 51, de acordo com a tradição, Davi publicamente poetiza a penitência que expressou a Deus depois de ter-se convencido do seu pecado na questão de Bate-Seba e Urias. Ele quebrou o décimo mandamento ao desejar a mulher do seu próximo; o oitavo, ao roubá-la; o sétimo, ao adulterar com ela; o nono, indiretamente, ao tentar enganar Urias para que cuidasse da criança que estava por nascer como se fosse sua; e o sexto, diretamente, matando Urias à longa distância. Então, como observamos anteriormente, Davi passou um ano indiferente ao que havia feito até que o profeta Nata, falando em nome de Deus, mostrou-lhe o descontentamento divino pela situação (2Sm 11-12). Mas, no Salmo 51, encontramos um Davi consciente, e que agora expressa total arrependimento em seis etapas distintas:

1. Os versículos 1 e 2 são uma súplica por misericórdia e perdão. Revelam uma verdadeira compreensão da aliança divina. Davi apela ao "inesgotável amor" ("benignidade" e "bondade" em outras traduções) de Deus, ou seja, à fidelidade da aliança divina com quem ele mesmo se comprometeu. A aliança pela qual Deus e os seres humanos se comprometem em pertencer um ao outro para sempre é a base de toda a religião baseada na Bíblia. Quando os servos de Deus tropeçam e caem, a fidelidade de Deus à aliança para com a qual seus servos foram infiéis é sua única esperança. O relacionamento nesta aliança é, enfaticamente, um dom da graça de Deus. E ele quem inicia e sustenta essa aliança, suportando todas as loucuras e vícios de seus parceiros que a constituem. Pois os santos de Deus foram, são e continuarão sendo criaturas loucas e pecadoras, que só podem che-gar à sua presença por meio do constante perdão de seus constantes pecados. No entanto, o arrependimento é o único caminho que leva ao perdão.

2. Os versículos 3 a 6 são um reconhecimento da culpa e a punição que merecemos por nossos pecados. Mostram a compreensão do pecado como a perversidade inata do nosso coração que encontra sua expressão nos pecados, atos específicos de maldade e erro aos olhos de Deus. As profundas verdades encontradas aqui são: primeiro, não somos pecadores porque pecamos, mas, pelo contrário, pecamos porque somos pecadores (v. 5,6); segundo, todos os nossos pecados, nossas crueldades e nossas idolatrias são pecados contra Deus (v. 4).

3. Os versículos 7 a 9 são um pranto vindo do coração para a purificação do pecado e anulação da culpa. Mostram a compreensão da salvação como uma obra de Deus que restaura a alegria da comunhão com ele mesmo por meio da convicção de perdão dos pecados. Os "ossos" de Davi (sua própria consciência, quem ele sabe que é) são "esmagados" (incapazes de funcionar propriamente) como conseqüência de sua consciência acusadora. Ele pede que seus "ossos" literalmente "dancem" ("exultem", como encontramos em diversas traduções)por causa desta garantia (v. 8) - uma metáfora vivida para a revitalização da vida interior de uma pessoa que a compreensão de seu pecado produz.

4. Os versículos 10 a 12 são uma petição para a vivificação e renovação em Deus. Mostram uma compreensão da vida espiritual como, em essência, a resposta firme e positiva do espírito do Homem para Deus - uma resposta que é produzida e mantida pelo ministério regenerativo do próprio Espírito de Deus que habita em nós. E a maneira que Deus usa para remover nosso demérito, nossa corrupção e nossos desvios. Ele não nos salva em nossos pecados, mas dos nossos pecados. Aquele a quem ele justifica, também santifica. Onde não existe vestígio algum de um coração puro (um coração que abomina o pecado e que reflete a pureza de Deus) ou de um espírito "voluntário" (uma disposição para honrar e obedecer a Deus, e resistir as tentações do pecado), podemos duvidar se a pessoa está realmente em um estado de graça de qualquer modo. Certamente, buscar uma renovação em justiça e afastar-se do pecado é, daqui em diante, a essência do arrependimento. Sem isto, a pessoa não manifestará contrição, e não é, de modo nenhum, penitente.

5. Os versículos 13 a 17 são uma promessa de proclamar a misericórdia perdoadora de Deus por meio do testemunho e da adoração. Mostram uma compreensão de ministério para Deus e para o nosso próximo: para o santo Deus, por meio do louvor que expressa gratidão; e para os pecadores, pela declaração da graça que salva. Observemos que os santos são salvos para servir - celebrar e compartilhar o que Deus lhes tem dado. Uma dedicação renovada para fazê-lo, além de todas as outras boas obras, é uma prova da realidade do arrependimento.

6. Os versículos 18 e 19 são uma oração que pede a bênção da igreja, a Jerusalém de Deus, o povo na terra que leva o seu nome. Os versículos mostram uma compreensão do que mais agrada a Deus - pecadores salvos, penitentes que agora estão perdoados e prosperam espiritualmente, que são movidos pela gratidão e alegria a oferecer "sacrifícios de justiça" (v. 19). (A idéia aqui é de oferecer presentes a Deus com amor, embora talvez os sacrifícios de novilhos, sobre os quais Davi fala, não sugiram isto para o leitor moderno). A intercessão de Davi por todo o povo de Deus não indica, na verdade, uma mudança do tema da penitência que ele estava expressando anteriormente. A intercessão brota naturalmente das experiências do amor perdoador de Deus que o arrependimento desencadeia. Uma pessoa que sabe que é amada mostrará amor pelos outros, e esse amor irá levá-la a orar por eles.

Davi honrou a pureza de Deus pelo modo como se arrependeu de seus vergonhosos atos. Ao se humilhar, ele reconheceu o desafio que havia lançado, procurou libertação do poder e da culpa de seus pecados e ofereceu-se novamente para realizar a obra de Deus e progredir em seu louvor. Este foi um ato de verdadeiro arrependimento, e, como tal, serve como modelo para nós.
Os cristãos, em seus sonhos e desejos, ainda que não mostrem isto em suas atitudes exteriores, também têm suas falhas no que se refere à cobiça, lascívia, avareza, malícia e engano. Os cristãos, como outros, são tentados a ser indulgentes consigo mesmos, abusar e explorar o seu próximo, usar sua autoridade como um direito no campo dos relacionamentos e, de vez em quando, desejar a morte de outros. Se Deus, em sua providência, nos impede ou não de realizar esses "sonhos" não é a questão. O ponto é que existem os desejos desordenados e quando o nosso coração se envolve com eles, ele está no caminho errado. Este é o motivo pelo qual precisamos nos arrepender.
Algumas formas do assim chamado ensino da santidade nos encorajam a ser insensíveis ou despreocupados com os pensamentos e motivos impuros que estão ocultos dentro de nós, mas um indício da santidade verdadeira é uma consciência crescente desses pensamentos e motivos, um aborrecimento crescente em relação a eles e um profundo arrependimento por eles quando nos vemos fomentando-os no nosso coração. Vimos este santo aborrecimento na vida de John Bradford, e Deus quer vê-lo em nós todos, pois sua pureza não pode ser honrada de outra forma.



O que é a justiça de Deus? – Thomas Watson (1620-1686) 




"Justiça significa dar a cada um o que merece." A justiça de Deus é a retidão de sua natureza, aquilo pelo qual faz o que é reto e de igual medida. "E não pagará ele ao homem segundo as suas obras?" (Pv 24.12). Deus é um juiz imparcial. Ele julga a causa. Os homens geralmente julgam a pessoa, mas não a causa. Isso não é justiça, mas malícia. "Descerei e verei se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim" (Gn 18.21). Quando o Senhor está diante de um ato punitivo, pesa as coisas na balança, não pune de qualquer maneira; não age desordenadamente, mas de maneira lógica contra os ofensores. Em relação à justiça de Deus, devo apresentar as seis seguintes posições:

a.      A justiça de Deus é santa

Deus só pode ser justo. Sua santidade é a causa de sua justiça. A santidade não permitirá que faça outra coisa senão o que é justo.

b.      A justiça de Deus é o padrão de justiça
A vontade de Deus é a suprema regra de justiça; é o padrão de eqüidade. Sua vontade é sábia e boa. Deus deseja somente o que é justo e, portanto, é justo porque deseja ser.

c.       A justiça é natural ao ser de Deus
Deus faz justiça voluntariamente. A justiça flui de sua natureza. Os homens podem agir injustamente, pois são forçados ou subornados.

A vontade de Deus nunca será subornada, por causa de sua justiça. Não pode ser forçado, por causa de seu poder. Ele pratica a justiça por amor à justiça: "Amas a justiça" (SI 45.7).

d.      A justiça de Deus é perfeita
A justiça é a perfeição da natureza divina. Aristóteles disse: "A justiça engloba em si todas as virtudes". Dizer que Deus é justo é dizer que é tudo o que há de excelente: as perfeições se encontram nele como linhas convergem para um centro. Ele não é somente justo, mas a própria justiça.

e.       A justiça de Deus é exata

Deus nunca cometeu nem nunca cometerá o mínimo erro em relação às suas criaturas. A justiça de Deus já foi distorcida, mas nunca distorceu. Deus não segue de acordo com o rigor da lei, ele alivia sua severidade. Pode infligir penas mais pesadas do que impõe: "Xos tens castigado menos do que merecem as nossas iniquidades" (Ed 9.13). As misericórdias para conosco são mais do que merecemos, e nossas punições são menos do que merecemos.

A justiça de Deus é definitiva

A justiça de Deus é tal que não é apropriado para qualquer homem ou anjo censurá-lo ou exigir uma razão por suas ações. Deus não tem só a autoridade do seu lado, mas a eqüidade. "Farei do juízo a régua e da justiça, o prumo" (Is 28.17). E algo inferior a ele, dar razão para nós de seus procedimentos. Qual destes dois é mais apropriado prevalecer, a justiça de Deus ou a razão humana? "Quem és tu. ó homem, para discutires com Deus?!" (Rm 9.20). A linha de prumo de nossa razão é muito curta para compreender a profundidade da justiça de Deus. "Quão insondáveis são os seus juízos" (Rm 11.33). Devemos adorar a justiça de Deus mesmo onde não vemos razão para tal.

Onde identificamos a justiça de Deus?
A justiça de Deus corre em dois canais. Ela é vista em duas coisas: na distribuição de prêmios e de punições.

a. A justiça de Deus é vista na premiação dos justos

Deus premia o virtuoso. "Na verdade, há recompensa para o justo" (SI 58.11). Os santos não devem servi-lo sem recompensa, ele recompensará os clamores e as lágrimas: embora os justos possam ser derrotados por causa dele, não serão derrotados por ele. "Porque Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com o seu nome" (Hb 6.10). Ele nos dá um prêmio, não porque mereçamos, mas porque nos prometeu.

b. A justiça de Deus é vista na punição dos ímpios
Ele é justo em punir os ofensores. Por que Deus é justo em punir os pecadores?

i.       Porque Deus pune os pecadores baseado em uma lei. "Onde não
há lei, também não há transgressão" (Rm 4.15). Mas Deus deu uma lei aos
homens e eles a quebraram, portanto os pune justamente.

ii.      Porque Deus pune os pecadores fundamentado em provas
concretas. Ele é justo em punir os ímpios, pois nunca os pune senão depois
de obter prova e evidência. Que maior evidência há do que a própria
consciência de uma pessoa como testemunha contra si. Não há nada que
Deus lance sobre um pecador que a consciência não sele como verdade.

APLICAÇÕES

Primeira aplicação: veja aqui mais uma flor da coroa de Deus: ele é justo e reto. Ele é exemplo e padrão de justiça.

3. Deus é justo ao permitir que o ímpio prospere?

Como fica a prosperidade do ímpio neste mundo em relação à justiça de Deus? "Por que prospera o caminho dos perversos, e vivem em paz todos os que procedem perfidamente?" (Jr 12.1).
Tal dúvida tem sido uma grande pedra de tropeço e tem levado muitos a questionar a justiça de Deus. Os que são mais pecaminosos são mais poderosos. Diógenes,52 quando viu o ladrão Harpalus prosperando, disse: "É certo que Deus jogou fora o governo do mundo e não se importa como as coisas acontecem aqui embaixo".
Deus se relaciona com a prosperidade do ímpio das seguintes maneiras:

a.      Usando-a como instrumento de sua vontade

Os ímpios, às vezes, podem ser instrumentos da obra de Deus. Embora não tenham em vista a glória de Deus, podem promovê-la. Ciro (Ed 1.7) foi um instrumento na construção do templo de Deus em Jerusalém. Deus permite que esses prosperem sob as asas de quem seu povo é protegido. Deus não fica em débito com homem algum. "Tomara houvesse entre vós quem feche as portas, para que não acendêsseis, debalde, o fogo do meu altar" (Ml 1.10).

b.      Usando-a para torná-los ainda mais indesculpáveis
Deus permite que os homens pequem e prosperem de maneira que fiquem ainda mais indesculpáveis. "Dei-lhe tempo para se arrependesse... da sua prostituição" (Ap 2.21). Deus adia o julgamento, estica suas misericórdias para com os pecadores e, se não se arrependem, sua paciência será testemunha contra eles e sua justiça será mais clara na condenação deles. "Serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar" (SI 51.4).

c.       Usando-a para destacar ainda mais sua justiça

Deus nem sempre deixa o ímpio prosperar em seu pecado. Alguns ímpios, Deus pune abertamente, para que sua justiça seja observada. "Faz-se conhecido o SENHOR, pelo juízo que executa" (SI 9.16), isto é, sua justiça faz homens caírem no ato do pecado. Assim fez com Zimri e Cozbi no ato da impureza.

d.      Usando-a para encher plenamente o cálice de sua ira

Quando Deus permite que os homens prosperem um pouco em seus pecados, o cálice de sua ira está sempre enchendo, sua espada está sempre afiada: e embora Deus possa evitar os homens por um pouco, a demora em agir não é perdão. Quanto mais Deus demorar em tomar uma atitude, mais pesado será no final. Enquanto existir a eternidade, Deus tem tempo o suficiente para lidar com seus inimigos.
A justiça pode ser como um leão adormecido, mas o leão acordará e rugirá sobre o pecador. Nero, Júlio e Caim já não se depararam com a justiça de Deus?

É tempo de todos os homens se aperceberem que é inevitável, e a justiça de Deus, por fim, os encontrará.